sexta-feira, 19 de julho de 2013

Entrevista com a Cris


Meninas, ainda não consigo entender como em pleno séc. XXI existem formas absurdas de preconceito. A única coisa que sei é que já não podemos mais nos calar, e muito menos deixar de sentir a dor de pessoas que a cada dia tem sido vítimas desse absurdo de expressão de ignorância!

Por conta dessa revolta, decidi inaugurar o blog com a história da Cris Santana, a menina mulher que precisou amadurecer em pouquíssimo tempo, e que, como tantas outras, sofreu preconceito na infância e como se não bastasse, foi mais uma vítima do preconceito velado. A história da Cris é tão marcante, que resolvi entrevistá-la. Ela é tão gente fina, que nem parecia que estava passando por uma barra, mostrou ser dura na queda!

Que saber sobre o desfecho da história? Então segue a rima.

Tassi: Cris, pra começar fale um pouquinho de você, por favor. Idade, cidade, o que você faz...

Cristiana Santana: Bom, primeiramente eu quero te agradecer por me dar a chance de falar sobre o que venho passando, como esta sendo pra mim, pois ajuda muito falar a respeito. Ficar pensando em como é difícil sofrer esse tipo de ataque é tortura em dobro. Me chamo Cristiane, resido em Santos, litoral de Sampa. Tenho 26 anos e atualmente estou trabalhando como governanta. É um trabalho temporário, até que eu comece eu termine os estudos e me forme.

Tassi: Conta pra mim como é que foi a sua infância e a sua adolescência? Na escola, como era?

Cris: Hmm, minha infância foi tensa, passei por autos e baixos do extremo. Até meus 5 ou 6 anos mais ou menos, eu era uma menina feliz, com um irmão pequeno e grudento que não queria me largar nem pra eu ir na padaria comprar média (média é como chamamos pão de sal aqui a baixada). Em casa eu era muito feliz, apesar de ter um pai alcoólatra, mas na escola minha vida era uma tristeza. Sofri demais, alguns professores não tinham paciência comigo. Não porque eu fazia bagunça, mas porque eu tinha dificuldade de aprender ou me socializar, era uma das poucas negras, tinha cabelo curtinho igual de molequinho mesmo, sempre de cabeça baixa, era chamada de cabelo de bombril e as outras meninas nunca me queriam por perto. Lembro de me ver chorando pelos cantos na escola... Mal consigo falar sobre isso, mas é necessário. Uma época depois, meus pais que brigavam muito se separaram, meu pai traiu minha mãe e humilhou ela na nossa frente, minha mãe deu uma surra nele e o colocou pra fora de casa. Meu pai era um negro, alto e magro, sempre que eu me lembro dele eu me vejo olhando para o alto, porque ele era tão alto e eu tão pequena, que é essa imagem que ficou na minha memória...

Eu tinha vergonha por ter um pai negro, sim, eu tinha, sabe por quê? Por que me era passada a imagem de que ser negro era feio, ter cabelo "ruim" era coisa horrorosa, Porque na escola e na rua davam apelidos pejorativos a ele para me magoar, e eu morria de vergonha disso. Queria que ele sumisse e que não saísse na rua pra que ninguém o visse e assim não tivesse mais motivos pra piadas. Quando ele foi embora, entrei em depressão, já rendia pouco na escola, e ali em diante fui piorando: eu tinha alucinações, via carros voando na rua, postes, pessoas... Nessa época minha mãe ainda cuidou de mim, me levou a um especialista e fiz tratamento, "melhorei". Minha mãe foi morar com outro homem, que no fim acabou não dando certo, ela se endividou, eles se separaram e perdemos a casa que moramos na minha infância. Tive que ir morar com uma tia (não vou entrar em detalhes, pois sofremos muito, eu, meu irmão e minha mãe, situações de passar frio e outras coisas certamente bem piores).

Quando estávamos prestes a ser entregues ao juizado de menor, ela teve ajuda financeira de uma patroa dela e nos mandou embora, numa viagem de ônibus, apenas eu e meu irmão, para Bahia, morar com a nossa vó. Também não vou entrar em detalhes, pois também sofremos muito. Não me esqueço de uma frase que minha vó me dizia: “Quando você voltar pra São Paulo, você vira p*** e seu irmão ladrão.” Forte né? Pois é, eu, com dez anos, era obrigada a ouvir, chorar e ficar calada.

Minha mãe voltou um dia pra nos buscar e o sofrimento amenizou. Tivemos nossas fases ruins sim, mas aprendemos a passar por tudo isso juntos. Fiquei mocinha, meu irmão cresceu, voltamos a estudar e a realidade já era outra. A vida tinha me ensinado muita coisa. Ele se tornou o melhor aluno da escola e por todas que passou, não virou ladrão e eu não virei p***. Estudei, no meio do caminho com 15 anos me apaixonei por um rapaz, no qual acabei tento um filho, hoje com 9 anos. Trabalho, estudo, penso em fazer faculdade de artes ou direito, apesar de bem distintas, me atraem.

Tassi: Sabemos que recentemente você foi mais uma vítima de preconceito e que acabou repercutindo bastante. O que aconteceu?

Cris: Eu tinha o costume de ler posts nesses blogs de humor, as vezes me divertia, me distraia. Um belo dia (ou não, Deus o sabe) comentei num post. Não tinha esse costume, mas naquele dia senti vontade de comentar. Em seguida veio uma chuva de comentários preconceituosos e totalmente fora do contexto da imagem e do meu comentário. Quando comecei a ler, travei, fiquei em estado de choque por uma hora. Estava deitada com meu notebook no colo e não consegui me mexer mais depois disso. Meus dedos ficaram duros, meu pescoço travou, as pernas travaram, não consegui chorar e nem chamar alguém. Parecia cena de filme de terror e, pasmem, eu era a vitima. Lembro que meu dedo indicador ficou travado com uma força muito grande em cima de uma tecla, que travou o note também, quando eu voltei a mim, não conseguia responder e nem digitar nada. Não consegui achar graça, pois nada do que foi escrito ali era humor. Não se pode fazer humor com defeitos (ou qualidades) das pessoas, pois não somos perfeitos, nem mesmo o "comediante" da vez. E eu peço a Deus e vou lutar em breve para que isso dê cadeia. Pena de morte, quem sabe. Eu ainda não tenho palavras pra me expressar.

Tassi: Muitas meninas do grupo “Meninas Black Power” denunciaram o ato, em sua defesa. Como é que ficaram as coisas depois disso?

Cris: Estou tendo uma ajuda imensa de pessoas maravilhosas que se tornaram meus amigos, sem, ao menos, me conhecer. Isso me deixa emocionada, porque hoje em dia é uma surpresa você ver esse tipo de coisa. A gente vê na TV e acha que na vida real essas coisas não acontecem. Engano nosso. Recebi também muito apoio por inbox, via facebook. Isso tem me motivado. Por enquanto, ainda nada resolvido de fato, até porque, vocês sabem, as coisas em nosso país se arrastam, não andam. Mas estou confiante que tudo vai dar certo, alias já deu certo! Só pelo fato de ver a mulherada reunida, denunciando já é um grande passo. Eu mesma acordei pro movimento negro. E vou até o fim, até onde eu não puder mais ir, até onde não tiver mais saídas.

Tassi: Na sua opinião, porque é que você acha que em pleno século XXI ainda acontece racismo?

Cris: Tassi, eu me faço essa pergunta todos os dias, mas cada dia me afundo mais em duvida. Eu adoraria encontrar uma explicação sensata pra tudo isso, mas não encontro. Talvez sejam pessoas com ego inflado, rsrs... Não sei. Só sei que vida ensina a eles como é que se faz direito.

Tassi: Você usa o seu cabelo natural, certo? Como foi é reação e a aceitação das pessoas a sua volta, já que os padrões de beleza dizem completamente o oposto?

Cris: Eu usei cabelo alisado por muito tempo, como a maioria de nós. Mas nunca fiquei satisfeita. Com o incentivo da minha prima tive a iniciativa de deixar o cabelo natural e manter a decisão de não voltar mais atrás, porque era um grande passo. E sabia das consequências. Minha mãe demorou a aceitar, meu filho e meu irmão então, nem se fala. Rsrs, Na época namorava um rapaz e acho que ele foi um dos poucos que aceitou numa boa. O mais difícil foi ver como as pessoas na rua reagem até hoje, parece que os olhares são todos pra mim, alguns com rejeição, os caras que antes mexiam, nem olham mais e achei que isso ia me deixar desanimada, porém me enganei. Descobri por mim e por quem eu sou um amor incondicional. O mundo pode não me aceitar como sou naturalmente, mas o importante é que eu durma e acorde feliz comigo mesma.

Fiz tranças pra ele crescer um pouco mais, porque eu tinha preguiça de cuidar também. Tirei as tranças depois de um tempo, tentei clarear, fiquei quase loira, rs. Mas ser loira é difícil então estou voltando a usar ele negro, do jeito que é. Já ouvi muito: Ai, para. Isso é modinha, volte ao seu cabelo como era. E um monte de bobagem, mas me dou bem com isso, agora.

Tassi: Por fim, que mensagem você gostaria de passar para nossas leitoras?

Cris: Não sou muito boa com palavras, em dar incentivo ou dizer coisas bonitas. Mas semana passada eu redescobri a força que mulher e principalmente a mulher negra tem. E quando se juntam então! Sejam vocês mesmas, amem seus cabelos do jeito que são e não importa se o da colega do lado enrola mais. O seu é do jeito que é porque condiz com sua personalidade. Se descubra! Sejam fortes, reajam contra o preconceito, não discutam com o "inimigo", ah, o cara falou, vá a delegacia e preste queixa o mais rápido!
Tenham fé!

10 comentários:

  1. Muito emocionada Cris!
    A nossa história, desde de sempre é o maior sinal de que nascemos sim pra vencer, os tempos são outros e nossa resistência é muito maior que qualquer moleque que usa a liberdade de expressão como desculpa pra ofender as pessoas, mais fortes quando estamos juntos e lutamos juntos!
    Tive meu facebook bloqueado por causa desse babaca que mexeu com a Cris, mas não tem problema, isso não é nada, o importante foi que dei meu recado a ele "Mexeu com um, mexeu com todos"!

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    1. Obrigada Rê. Garanto que esse fardo, ele nunca vai esquecer. Estamos juntos.

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  2. Parabéns, pelo blog, pela entrevista. Quanta força e ancestralidade tem nesta conversa, imaginei nossas avós e bisas conversando assim, pensando em como seriam as nossas vidas, o nosso futuro, acredito que elas pensavam muito em nós. Infelizmente, têm aquelas que cresceram com a mente colonizada, pensavam, e muitas ainda pensam, que seremos criminosos ou mulheres perdidas, rsrs. Ainda bem que há a luta secular de muitas mulheres negras em nós, descobrimos a força do grupo, o que podemos fazer em conjunto por nós e pelo país. O sofrimento trazemos geração após geração, estamos marcadas por ele. Mas, e ainda bem que há o mas, podemos reinventar a dança, deixá-la mais leve, dançar junto, sabendo que é compartilhada esta dor, que a transformamos em alegrias, pequenas muitas vezes, breves, mas conquistadas com muita fé, sabendo que a marca se impõe no grupo, podemos gritar que não queremos mais esse sofrimento, podemos tirá-lo de nossos filhos e filhas, podemos, somos capazes de nos descobrir e criar um mundo ressignificado, com um corpo nosso, uma alma livre. Tudo no seu tempo. Agora.

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    1. Muito obrigada, espero que continue sempre por aqui, teremos muito mais entrevistas emocionantes como a a Cris.

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  3. Parabéns Cris! Deus te criou segundo à Sua imagem e semelhança. Você é linda! Obra prima do Pai. Bjs

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    1. Amém Luiz!! Somos lindos! rsrs Deus te abençoe, bjão!!

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  4. Parabéns Tassi Oliveira, pela inauguração do Blog com uma entrevista tão significativa e marcante.
    Mais que um espaço, você conseguiu mostrar dois talento, a capacidade da Cris Santana de escrever sua história de forma clara e didática. De expor sentimentos profundos, com uma mensagem de ação, sem lamentos e de forma muito positiva, que imagino servirá de exemplo para muitas pessoas.
    Essa entrevista mostra uma sintonia entre entrevistada e entrevistadora. Muito bom ver jovens mulheres negras talentosas como vocês.
    Emocionante Cris Santana, acabei de ler e reler. Me impressionou a forma em que você expõe sentimentos tão profundos, dores que nos machucam na alma. Todos nos de uma forma ou outra passamos por isso, de forma velada ou mais aberta. Importante é a forma que reagimos, você se articulou, encontrou parceiros e foi para frente. Abre um caminho de participação da jovem mulher negra. Mais consegue escrever um discurso articulado, mostrar e desenvolver uma prática de ação. Parabéns dá orgulho!

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    1. Obrigada Hugo, precisamos ter voz ativa! Este blog sempre estará e portas abertas para expor histórias como a da Cris, espero que fique sempre por aqui. Abraço.

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  5. Ler sua experiencia de crianca me faz lemvrar da minha infancia que por algum tempo foi ao seu lado , vc tem que se orgulhar e mt otima pessoa otima mae otima mulher e muito educada w linda! Cris pessoas como essas que vc.citou sao pessoas vazias! Adoro vc viu

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    1. Obrigada, Dani, a melhor época da minha vida foi ai, tbm adoro vc.

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